“O Que Acontece com o Mundo Acontece Connosco”. Bienal de fotografia do Porto (Portugal). Na Reitoria da Universidade do Porto, a Bienal apresenta o diálogo entre “Travessia”, de Susan Meiselas, e “Muxima”, de Alfredo Jaar, sobre a herança do colonialismo português em diferentes geografias – no Porto e em Angola – evidenciando os desafios socioculturais que produzem as realidades de precariedade e resiliência das comunidades africanas e afrodescendentes nos dois continentes.
Por Orlando Castro
Em tempos, almocei num restaurante do Porto com mais três amigos. A simpatia do empregado levou-o a quebrar o gelo com uma frase emblemática: “É um prazer receber três africanos e um europeu”. Conclusão supostamente fácil já que três eram negros e um branco.
No fim do almoço, depois da conta paga, um dos meus amigos chamou o empregado e disse-lhe:
– Errou nas nossas nacionalidade. É que três são portugueses, portanto europeus, e só um é africano.
Perante a incredulidade do empregado, esclareceu: Os três negros são todos portugueses e o branco é o único africano.
Em Setembro de 2019, o vice-cônsul em Lisboa, Mário Silva, disse que cerca de 200 cidadãos de Angola que, há mais de 40 anos, fizeram a ponte aérea para Portugal, iriam poder ter, a partir de Janeiro de 2020, um bilhete de identidade angolano. Foi uma, mais uma, prova de racismo primário do MPLA porque, de facto, estava a considerar apenas, só e exclusivamente, cidadãos negros. Na mesma situação estiveram e estão milhares, muitos milhares, de angolanos… brancos.
Segundo o diplomata do MPLA (partido no Poder há 45 anos), “estas pessoas, que fizeram a ponte aérea entre Luanda e Lisboa há mais de 40 anos, só tinham, até agora, documentação portuguesa, embora fossem cidadãos angolanos”. Mais um lapso, mais uma mentira. A ponte aérea também se fez entre Nova Lisboa e Lisboa, para além de milhares da angolanos terem atravessado a fronteira terrestre, chegando a Portugal (mas não só) através da África do Sul.
“Ou porque já não encontravam os seus familiares em Angola para actualizarem documentação e informação, ou porque, por razões financeiras, não conseguiram pagar a viagem para Luanda para lá tratarem do seu Bilhete de Identidade”, disse Mário Silva, precisando que há cerca de 200 pessoas nesta situação em Portugal.
Mário Silva explicou que são pessoas, hoje, com mais de 70 anos, que viajaram com um “padrinho” português para Portugal quando se deu a independência de Angola, o seu país de origem.
Na altura, com base na certidão de baptismo e nas informações disponíveis nos registos portugueses (como o próprio Bilhete de Identidade português), conseguiram tratar da documentação como cidadãos portugueses, nascidos num território que, na altura em que nasceram, era português. Porém, nunca mais conseguiram tratar da documentação como angolanos que são, disse, esquecendo-se de falar do bloqueio das autoridades do MPLA que, em Lisboa, diziam (disseram-me a mim, por exemplo) que “se é branco não é angolano”.
“Hoje, da sua legalização como cidadãos angolanos depende também a dos seus filhos e netos, que podem eventualmente querer um dia contribuir ou viver em Angola”, admitiu o vice-cônsul.
Pensando em tudo isto, o Governo de Angola decidiu dar ao consulado angolano em Lisboa a responsabilidade de tratar de tudo o que é necessário para que estas pessoas passem a ter um bilhete de identidade angolano, explicou.
Os consulados de Angola em geral passaram agora a ter a possibilidade de emitir também bilhetes de identidade para todos os cidadãos angolanos, além dos passaportes e outra documentação que já emitiam.
Porém, para quem fez a ponte aérea entre Angola e Portugal e nunca teve um BI de Angola, embora sendo angolano, o consulado em Lisboa vai ter uma equipa técnica, com três pessoas, que segundo Mário Silva estaria a funcionar em Janeiro de 2020, para, através de informações disponibilizadas pelas instituições portuguesas e de entrevistas com as pessoas, actualizar a informação necessária para a obtenção do BI.
O Consulado de Lisboa não vai dar resposta apenas a pedidos de cidadãos de Portugal nesta situação, mas também a pedidos idênticos de cidadãos que vivam noutros países da Europa, adiantou Mário Silva.
“O Presidente determinou que há um consulado para a América, outro para a África e outro para a Europa, que dão resposta aqueles pedidos”, explicou.
Recordo, a propósito, um episódio que data de 28 de Julho de 2007. Nesse dia, na Faculdade de Economia do Porto, realizou-se uma conferência sobre o processo eleitoral em Angola. Caetano de Sousa, presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE), foi o orador principal do evento ao qual compareceram cerca de 200 angolanos de primeira e mais meia dúzia de segunda.
Com uma hora de atraso, o encontro começou com o aplauso da assistência à entrada do então Embaixador de Angola, Assunção Afonso Sousa dos Anjos, bem como das cônsules em Lisboa e no Porto, respectivamente Elisabeth Simbrão e Maria de Jesus dos Reis Ferreira, e ao orador convidado.
Por deficiências sonoras, que nada preocuparam a assistência, pouco se percebeu do que disse o Embaixador ou do que afirmou Caetano de Sousa. Também é certo que, diga-se em abono da verdade, abandonei a sessão no início da intervenção do presidente da CNE.
E abandonei a sessão porque descobri que, afinal, o meu lugar não era ali. E descobri isso graças à oportuna explicação de gente ligada à organização, presumo que do Consulado no Porto.
Explico. No meio dos tais 200 cidadãos presentes estavam pouco mais de meia dúzia de brancos, mesmo contando com o meu velho amigo Ricardo Pereira que ali se encontrava a fotografar ao serviço do Consulado.
Durante a sessão, algumas pessoas foram distribuindo pela assistência um pequeno papel que, tempos depois recolhiam. Presumimos que se tratava de perguntas sobre o processo eleitoral e destinadas aos oradores.
Reparei (talvez por “deficiência” profissional) que esses papéis não eram entregues aos cidadãos brancos que, se não eram angolanos eram, pelo menos, amigos de Angola. Não creio que estivessem ali como penetras apenas para o faustoso beberete que estava a ser montado para o fim da festa.
Interpelei então uma das pessoas que distribuía os ditos papéis, perguntando-lhe se não tinha direito a um deles.
A resposta foi clara e inequívoca:
“- Isto é só para angolanos”.
A tradução desta afirmação é fácil, já que nenhum dos 200 cidadãos presentes trazia qualquer rótulo a dizer: “Sou angolano”. Ou seja, queria dizer: “Isto é só para angolanos negros” ou, talvez, “para nós os brancos não são angolanos”.
Assim sendo, e porque sou angolano… mas branco, não tive outro remédio que não fosse abandonar a sala. Triste, é certo. Magoado, é claro. Mas como nada podia fazer quanto ao local de nascimento, ao país que amo, e muito menos quanto à minha cor, a solução foi ir embora.
E, já agora, uma homenagem ao saber, ao conhecimento, à preparação dos políticos do MPLA. Quando em Junho de 2009, o director-executivo do Comité Organizador do Campeonato Africano das Nações 2010 (COCAN) foi a Lisboa fazer a primeira apresentação da CAN 2010, lembrou que, “para quem conhece um pouco da história de Angola”, nos tempos dos portugueses “o Lubango era chamado de Nova Lisboa”.
Sem mais nem menos. António Mangueira, numa relevante demonstração dos seus conhecimentos da história de Angola, só faltou dizer que, se calhar, a cidade do Huambo era chamada para aí (deixa lá ver!) de Sá da Bandeira…